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Wadi Rum: silêncio do deserto

Wadi Rum: silêncio do deserto

A areia segue de um lado a outro como se determinasse uma trilha imaginária, sempre destemida em busca de destinos indeterminados. O único som que se ouve é o soar da respiração, o vai-e-vem do vento que toca o rosto. Quando o olhar passa a investigar a paisagem descobre uma cadeia de imensas montanhas que guardam em 720 quilômetros quadrados os segredos do deserto de Wadi Rum, na Jordânia, um santuário silenciosamente protegido por beduínos. Dona de cenário que mescla vegetação esturricada pelo sol, a grandiosidade de paredões de pedras e a profundidade de inúmeros desfiladeiros, a região, tombada este ano como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, é tratada como um nobre tesouro, uma vez que unicamente aqui é possível mergulhar numa cultura de mistérios, cercada por inscrições petrográficas que datam de quatro mil anos atrás.
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Wadi Rum possui belezas em cada um de seus detalhes

À maneira beduína, a ordem para quem chega – pela primeira ou pela centésima vez – é acomodar-se em uma das tendas desenhadas em extensos acampamentos, como o Captain’s Desert Camp, onde não cabem regalias excessivas, mas uma cama coberta por mosqueteiro, mesa com uma cadeira e a iluminação de um lampião. As paredes são tecidas por um tipo de lã grossa para proteger contra o frio trazido pela noite, enquanto os toaletes estão distantes alguns bons passos e são equipados com o suficiente para um banho, talvez o mais inesquecível da sua vida. Antes que a viagem pareça uma lembrança a ser esquecida, surgem vestidos em longas batas brancas, os beduínos, que complementam seu visual com lenços quadriculados amarrados à cabeça, numa espécie de armadura capaz de superar as altas temperaturas que dominam o deserto. São eles os responsáveis por ofertar o mimo mais precioso do acampamento traduzido em desmedido carinho e atenção. São eles também que conduzem a uma experiência fantástica, vivida no lombo de um camelo, a caminho do pôr-do-sol. A cada marca deixada na areia pelas patas do animal – numa vasta área de solidão -, os desenhos naturais que envolvem a cena convidam à reflexão, à feitura de um pedido ou a qualquer pensamento que simplesmente deixe a imaginação fluir, tamanha magia que envolve o momento. Não há tempo para pensar em enjôo ou medo, uma vez que a reação mais natural é curtir uma excitação contida frente a um episódio da vida quase indescritível. O desfecho se dá em silêncio no alto de uma pedra, onde os segundos são contados iluminados por um sol que não faz feio diante dos convidados que o observam sumir atrás das montanhas para a chegada da lua.

Quando a noite cai
Na troca de turno, quando a claridade é substituída pela escuridão, o acampamento se mostra lotado por turistas vindos das mais diversas partes do mundo atraídos pela possibilidade de aproximação de uma cultura de costumes tão diferentes, como a árabe, que sugere opressão num distante olhar ocidental, e respeito e alegria para quem se permite entendê-la. Ao passo que as horas seguem, a grande estrela da noite sai literalmente da terra, já que, segundo a receita, o carneiro – principal carne consumida na Jordânia – precisa ser cozido junto ao fogo, mas embalado em papel alumínio e acomodado em um tipo de churrasqueira que é devidamente enterrada e coberta por uma fogueira. No tempo precisamente determinado na cabeça dos beduínos, o pacote é desenterrado para saciar os hóspedes com uma carne tenra, acompanhada de legumes, salada de vegetais, homus e pão sírio. Bebidas – sempre e apenas não-alcoólicas – estão incluídas. À medida que a fome é satisfeita, a ordem é largar o prato para se aventurar na dança árabe, delineada ora pelo movimento para frente e para trás dos pés dos homens, ora pelas curvas envolventes das mãos das mulheres. A música se faz no estilo voz, violão e palmas das mãos. O que de longe parece fácil, de perto é um desafio difícil de ser vencido. No entorno, discretamente, os beduínos apreciam e se deixam conquistar pelo movimento dessincronizado das turistas, que em homenagem e em respeito a eles, se trajam em longas batas delicadamente bordadas com linhas coloridas. A festa acaba em melancia, causos e muitas risadas. Com todos os hóspedes em suas respectivas tendas, absolutamente todas as luzes são apagadas e parte da energia elétrica desligada. Uma última olhada para o céu e todas as estrelas estão presentes, em intensa proximidade dos olhos. É hora de dormir na completa quietude do coração de Wadi Rum.
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Cenários já foram pano de fundo para filmes

Quando o sol surge
Nas primeiras horas do dia, o sol é sempre o primeiro a chegar para acompanhar o café da manhã regado a pão sírio, geléia caseira, ovos fritos, chá e café, ou refrigerante para os mais corajosos. A confusão de sabores na primeira refeição do dia é motivo para despertar entre os turistas, que sentam lado a lado, um bate-papo informal com pessoas que nunca viram antes, numa mistura idiomática que – sabe-se Allah como – permite que ingleses, americanos, brasileiros e árabes conversem. E se entendam. Entre brasileiros a interação acontece no exato momento em que a nacionalidade é revelada, o que instintivamente faz surgir expressões como Kaká, Ronaldinho, Neymar e todas as outras estrelas futebolísticas do Brasil. Os mais ousados desafiam a qualidade do futebol nacional, e ali, para quem desejar ver acontece, no meio das areias do deserto, uma partida entre beduínos – com suas batas brancas – e turistas brasileiros. O placar final pouco interessa quando se tem a oportunidade de torcer por um jogo tão improvável.

A bordo de caminhonetes 4X4, o destino é os meandros que serviram de cenário para as gravações de Lawrence da Arábia (1962), filme de David Lean, que remonta as proezas de T.E. Lawrence e do príncipe Faisal Bin Hussein durante a Revolta Árabe na Primeira Guerra Mundial. Tomada pelos tons bege e ocre das areias e montanhas, a série de locais que surgem mostram sua imponência na forma de montanhas gigantescas, ora formando um extenso corredor, ora abrindo um horizonte com inúmeras arquiteturas naturais. Na esquina, de uma curva e outra, para delírio dos consumistas, como verdadeiro oásis uma loja de souvenires dá as boas-vindas, comandada por um trio de árabes. No interior do empreendimento, sem nome e sem endereço, batas, colar de ossos de camelo, kajal (maquiagem usada nos olhos), lenços, echarpes, pulseiras e ervas garantem boas compras brindadas com chá quente – quase fervendo – o que segundo a cultura local ajuda a afastar o calor. Na prova de uma das peças, uma surpresa à moda árabe: ao ser questionado sobre a beleza de uma bata no corpo, um dos vendedores beduínos, antes de responder, cobre o rosto da compradora, deixando aparecer somente os olhos, para então responder Agora, você está linda. Antes de deixar os limites da loja, há tempo para descontração, com árabes celebrando a visita dos novos turistas com canto e dança. Em resposta a gentileza, brasileiros se juntam numa roda de samba, o que num primeiro segundo gera estranheza, até que com passos completamente desconexos e sorrisos, novamente todos falam a mesma língua.

Ao passo que os rastros das rodas são deixados para trás, a intensidade de Wadi Rum ganha novas dimensões no retrovisor do carro, enquanto os misteriosos e sempre discretos beduínos já sugerem permanecer para sempre na memória.

Anote!
Wadi Rum também é chamado de Vale da Lua e dentro de seus limites está a Burdah, ponte de pedra que se formou naturalmente com um arco a 35 metros de altura. No deserto quem optar por uma aventura com mais adrenalina pode escolher se hospedar em acampamentos selvagens, que não possuem apoio ao turista e que implicam levar tenda e equipamentos próprios.

N.R.
A jornalista viajou a Wadi Rum a convite do Jordan Tourism Board e ficou hospedada no Captain’s Desert Camp

Para saber mais:
Jordan Tourism Board www.visitjordan.com


Flávia Lelis, editora de conteúdo online e amante de viagens por natureza

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